quinta-feira, dezembro 11, 2008

Carmem

Carmem não era mulher de aceitar aquilo assim. Não daquela forma – nunca. Era mulher de ir às forras, de virar a mesa, de riscar a faca e mostra quem é a dona da banca. Não se reconhecia naquela situação, nem poderia.

Carmem Maria da Silva Gomes de RG e tudo. Gomes do último casamento, pelo menos salvou o Maria da Silva. Sempre ressaltava o Gomes, mulher casada e de respeito - não se tratava de uma qualquer. O marido se foi, o Gomes nunca!

Não se reconhecia naquela situação. Não!

Desde cedo sua mãe, mulher boa dona de bar, lhe ensinara como tratar com homem – rédea curta, perna aberta e olho mais aberto ainda. Pena que seus conselhos nunca lhe livraram de poucas e boas. Carmem cansou de vê-la levar surras e mais surras de homens de rua - paixões instantâneas de uma mulher solitária e fraca. Tudo sempre se resolvia nos fundos do bar, onde sua mãe, lavada de lascívia sempre se reconciliava com seus amores eternos de fim de dia. Dona Biu era mulher de homem, era bem chegada no produto. Era mulher de fibra e não estava nem a fim de abafar desejo. Sempre se resolveu, mesmo sozinha. Não havia homem que lhe bastasse, e nem queria, nunca quis, ter um só. Só tinha um compromisso e esse era com suas próprias vontades. Traçava seu próprio prumo, traçava todos. Não era facilidade, era praticidade.

De tudo levou a lição, nessa vida não cabe tanta pergunta, as coisas apenas são o que são. Não iria cair na mesma cruzeta do destino. Carmem não queria a herança de dor da mãe que sofria entre os engradados de cerveja e vinho barato, disfarçando a cara de mulher apaixonada pelo negro Tião atrás de um balcão. E que, sem riso nem flor, passou na vida como uma leoa sem ninho, sem nenhum pouso.

Não se reconhecia naquela situação que se encontrava agora. Não era ela. Não. Carmem debulhava o milho. Esparramava o trigo sobre sua cama e abarrotando a cara marcada, revirara a noite toda pensando no problema triste que tanto lhe afligia. Tomara o veneno, o vidro todo. Não havia mar que lavasse aquilo, nem um oceano. Era rocha cristalina em seu peito. Rocha de sustentação. Era amor. Caira na maldição de sua mãe. Já havia corrido um rio de lágrimas sobre o lençol casal de liquidação. Não passou. Não passara. Não passará. Não tinha bula, nem corredor. Não tinha cultura nem Virginia Woolf em quem se apoiar: Camões, Florbela, Vinicius...só Reginaldo Rossi. Nem tinha palavras... I love you, O amor é uma dor, Se amar é viver...queria transcrever, arrancar de dentro e expulsar as palavras que tanto sua língua recusava falar, aquilo lhe agoniava, era como falar sem palavras. Queria gritar, mas nem isso sabia. Queria falar num mandarim desgraçado o que entalava sua goela e a impedia de deglutir a respiração. Estava naquela cama havia dias, definhava de um amor podre e horrível. Era força inabalável, veio com tudo. Carmem pela primeira vez chorava como um animal recuado. Fora violentada por tudo de uma vez. Suas pernas sangravam em chagas profundas de um calor danado. O fogo ardia de dentro e lascava a carne de feridas, de brotoejas que lhe marcavam a pele. Todos podiam vê a qualquer luz, era amor naquela pele. Até sua cor pálida de doméstica de casa de família mudara completamente. Estava rubra e cálida, como seu coração de 27 que com mais um milímetro daquele amor com certeza explodiria.

Carmem pensava em morte. Solução inevitável. Pensava em Jesus, mas Jesus nunca trepou. Pensava em psicanálise, mas nem sabia bem o que era isso. Queria mesmo era vomitar aquilo, viu na novela, era bonito de se dizer.

Não tinha pedra de alicerce, estava só no meio daquela confusão toda. Dessa vez, super bonder e um jeitinho não a livrariam das conseqüências. Era Thércio o nome do problema, a maldição ainda desconhecida pela medicina. O homem que rasgava seu peito com facas sem consolo. Queria cuspir na sua cara e lhe dizer umas verdades. Cuspir na sua cara e falar tudo aquilo de podre! Falar todo tipo de palavrão que se sabe! Falar as do fim! Encher a mão naquela cara! Dar-lhe um tiro e arrancar aquele sorriso lindo que encantara suas noites e a enchiam de lágrimas os olhos. Estapeá-lo até a morte o peito enquanto tentava arrancar carícias sem que ele percebesse. Nem um oceano lavava aquilo. Thércio, hoje de novo, não a deixaria dormir nem à pau. Onde quer que fosse, pra onde quer que se virasse, na cama, lavando copos, varrendo embaixo do sofá, sorrindo na novela, na nota de dez reais, entre os melões na feira, não vinha outra coisa.

Carmem Maria da Silva Gomes, doméstica, solteira, pernambucana, falecida no dia 14 de maio de 2007, causa da morte: traumatismo craniano.

Carmem não achou Jesus, nem psicanálise.

Dedicado a Felipe

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