Mergulho
000Todo dia que passou. Tudo o que ainda está lá sobre a mesa. Minha identidade, a bolsa, o gato, jóias. Tudo o que ainda chegaria, tudo que começou. Brindemos. A tudo que fomos e tudo o que pomos sobre a mesa. Farta, de tudo, cheia de vida e experiências. Que não se negue nada. A ânsia de vômito e o prazer, o deslocamento e a inércia, a frigidez e o solavanco. Não se negue nada.
000Hoje, somos bem diferentes do que em qualquer outro dia do universo. Melhores o possível. Fomos sempre diferentes de tudo que sentimos, não nos vemos, nem na alma, nem nos sonhos, não podemos nos sentir. Pura metafísica, física mesmo, alucinações letárgicas, litúrgicas, sensoriais. Sinestesia. Sempre. Sempre quis me julgar por fora, de longe, intacta de erros e ganhos. Não tenho asas, fico.
000Tentei apagar minhas marcas, perdi tempo. Sou errada e a vida também, desde sempre gostou de mim, igual a ela, não durei, nem o tempo necessário de realmente ficar. Passei. Como o vento que sempre temi. Joguei com coisas que não conhecia. Perdi, obviamente tudo.
000Não me subestimei, nunca. Tenho dores maiores que o mundo, janelas me feriram de forma irreversível. Irreversível – a madeira. Incrível, nunca vira água, é dura e não entorta, não vira água nem no fogo. Irreversível, sou papel. Desde tempos não danço direito, não jogo direito, não ando direito. Manco entre uns e outros, mendigo sossego nem que seja para corpo. Se me restar algo que se use na evolução do mundo, dôo tudo à evolução de algo que seja móvel e virginal, que passe e fique.
000Desde tempos remotos dentro de mim, a gravidade de tudo me joga, contra a parede, contra o teto, contra o chão. Não suporto. Bridget Bardot veio me visitar. Me trouxe licor de ervas, disse que ficarei boa, no final da semana. Acho que passarei o dia lendo, os restos de páginas finais. Tudo tem um fim, o livro acabará amanhã. Chorarei feito criança, antes de adormecer sobre minhas lágrimas, secas de um tempo bom.
000A xícara estava quente, porcelana branca, asa curta, café tava quente. Senti a devassidão de tudo no líquido quente que me invadia, café negro feito de sangue e dor. Paris. Humprey Bogard. Sempre achei que a bonequinha de luxo usasse drogas, inveja. Paro de ser boa. Calo minha boca, fluxo de merda e nojo. Não tenho mais bons dias a tempos, nem noites curtas. Paro de me vestir, viro cachorro. Manco, ele sempre estava lá. Quero de volta meu amuleto, Billy Zane roubou. Quero de volta meu triciclo, Patrick Swaze roubou.
000Faça-se luz. Nem naquela noite estranha tive sorte. Todos sorriam, aves torradas recheavam a noite sobre a mesa. Uva, linhaça, romã, champagne, estava tudo lá. Só o que me resta ainda é essa vontade de cuspir. Gôsto de plástico, de Sorriso, de anticéptico com álcool. Acorda pra cuspir vagabundo! Queimou minhas axilas, minha gengiva, aquele álcool todo; no anticéptico. Sempre acreditei na força do amor. Quando era pequena me jogava debaixo da cama e lia as cartinhas que eu fazia para Carlos André. Queria beijar ele. Com tanta força que quebraria meus dentes, e os da frente dele. Aos 18 anos Carlos André disse que dormia na caixa e que meu beijo de quebrar dentes não iria ser dado nele. Eu queria ser homem. Pelo menos um agora tá dando o meu beijo nele. Claro que beijei outros depois, casei, descasei, e tudo mais. Mas nunca quebrei nenhum dente.
000Acho que ainda está lá. Com toda certeza ainda está lá. A borra está lá. Certo dia enquanto passava em frente às lojas do centro a caminho de lugar algum, tarde quente, seca, enquanto fumava um cigarro barato, notei uma presença no ar. Além do fétido cheiro característico do ser humano, percebi um fedúm ácido de algo diferente. Tudo muito estranho. Detesto cachorros, mas a culpa não é deles. Detesto gente, mas a culpa tão pouco é deles. O tempo não tem cheiro. Nem sou eu. Paro. Paro imediatamente! O maldito cheiro me persegue, me invade, me circunda, tenta me devassar, me despir, me estuprar. Calor desgraçado me molha as roupas. Permaneço parada. Imploro que vá. Vá! Vá pra longe cão miserável. Vá para longe sangue de cão miserável. Sabor de enxofre! Capeta satanás! A essas alturas meu cigarro terminara. Um rubor me dominava, tudo rodou, até o chão. Tentei me segurar nas pernas brancas, tonteei. Pára, sou racional, pago minhas contas, sou branca, filha de homem. Pára! Senti minha civilidade abatida. E como por um expurgo, talvez pelo fato de o coisa saber agora que pago minhas contas, sou branca e filha de homem, ele parte. Graças a deus. Recomponho-me, retoco o resto da beleza invadida que me restou naquela rua no centro, em meio a tudo e todos. Em meio a tudo e todos fui possuída por uma força estranha, objeto mal identificado, parte de mim sei lá, morador de rua talvez, calor do dia quem sabe. Recupero o fôlego e parto, meio errante, mas certa do destino. Parto dali, daquele lugar sujo que me feriu, me sujou e ofendeu. Está lá, com toda certeza ainda está lá, posso sentir, posso até ir lá comprovar, mas sei, que está lá. Sou eu, eu! Sou a borra, a borra do meu cigarro que caiu naquela rua, durante tudo. Durante um momento sublime a borra caiu. Caiu no chão úmido e fétido enquanto tudo rodava, o chão tremia e as palavras criavam asas. Sou eu. É como sou. Como me encontro exatamente agora, naquele chão enquanto tudo passou. Não há como me recompor. Irreversível. Se abrir os olhos posso sentir os gosto do meu sangue que jorra. Sinto na pele. É ácido.
000E agora como tudo já está pronto. Como a rima está rimada. O conto perfeito. A poesia chorada. Como tudo está pronto eu vou.
000Não corro. Respiro baixo. Posso sentir a vida entre os meus dedos. Agora. Sim. Tudo está aqui. Posso até sorrir. Te contar o que vi. Me mostrar para todos. Sonhar. Eu vôo. Eu vou. Ele está lá. Me espera. Me espera! Não há dúvidas no amor. Eu ando um caminho só meu, um caminho que sempre soube trilhar sozinha, estava escrito, sempre determinado. O tempo é bom. As coisas eternas. Pessoas também. Amo todas. Sorrio como quem sempre fez amor aos sábados. Como quem recebe de volta o triciclo e o amuleto de homens maus, como quem reza de tarde. Como quem trilha o caminho certo. Com quem sente o vento da noite. Como quem parte.
000Eu vou. Ao mergulho. Que o mundo é curto e o tempo...esse já não sei como fazer. Que diferença fez tudo? Não tenho marcas. Posso sentir o gosto do infinito. Do céu. Das nuvens. Voar com as andorinhas negras. Sorrindo entre elas, voando entre elas, sorrindo. Feliz. O sol é tão lindo. Eu vou. Entre as águas. O mar me recebe. Sou o barquinho da Clarice, mergulho profundo. Não estou só. Mergulho mais fundo. Azul. Todo o amor do mundo. Recebo a glória, a benção. A unção de Cristo. Sei de tudo. Sei de tudo agora. Tudo fez sentido. Até o que não fiz. Sinto agora: o certo, o errante, o julgado. Sorrio. A entrega é inerte, quase osmose. Sorrio e parto. A algo que me espera. E eu sei o que é. Sorrio e parto. Mergulho.
000Hoje, somos bem diferentes do que em qualquer outro dia do universo. Melhores o possível. Fomos sempre diferentes de tudo que sentimos, não nos vemos, nem na alma, nem nos sonhos, não podemos nos sentir. Pura metafísica, física mesmo, alucinações letárgicas, litúrgicas, sensoriais. Sinestesia. Sempre. Sempre quis me julgar por fora, de longe, intacta de erros e ganhos. Não tenho asas, fico.
000Tentei apagar minhas marcas, perdi tempo. Sou errada e a vida também, desde sempre gostou de mim, igual a ela, não durei, nem o tempo necessário de realmente ficar. Passei. Como o vento que sempre temi. Joguei com coisas que não conhecia. Perdi, obviamente tudo.
000Não me subestimei, nunca. Tenho dores maiores que o mundo, janelas me feriram de forma irreversível. Irreversível – a madeira. Incrível, nunca vira água, é dura e não entorta, não vira água nem no fogo. Irreversível, sou papel. Desde tempos não danço direito, não jogo direito, não ando direito. Manco entre uns e outros, mendigo sossego nem que seja para corpo. Se me restar algo que se use na evolução do mundo, dôo tudo à evolução de algo que seja móvel e virginal, que passe e fique.
000Desde tempos remotos dentro de mim, a gravidade de tudo me joga, contra a parede, contra o teto, contra o chão. Não suporto. Bridget Bardot veio me visitar. Me trouxe licor de ervas, disse que ficarei boa, no final da semana. Acho que passarei o dia lendo, os restos de páginas finais. Tudo tem um fim, o livro acabará amanhã. Chorarei feito criança, antes de adormecer sobre minhas lágrimas, secas de um tempo bom.
000A xícara estava quente, porcelana branca, asa curta, café tava quente. Senti a devassidão de tudo no líquido quente que me invadia, café negro feito de sangue e dor. Paris. Humprey Bogard. Sempre achei que a bonequinha de luxo usasse drogas, inveja. Paro de ser boa. Calo minha boca, fluxo de merda e nojo. Não tenho mais bons dias a tempos, nem noites curtas. Paro de me vestir, viro cachorro. Manco, ele sempre estava lá. Quero de volta meu amuleto, Billy Zane roubou. Quero de volta meu triciclo, Patrick Swaze roubou.
000Faça-se luz. Nem naquela noite estranha tive sorte. Todos sorriam, aves torradas recheavam a noite sobre a mesa. Uva, linhaça, romã, champagne, estava tudo lá. Só o que me resta ainda é essa vontade de cuspir. Gôsto de plástico, de Sorriso, de anticéptico com álcool. Acorda pra cuspir vagabundo! Queimou minhas axilas, minha gengiva, aquele álcool todo; no anticéptico. Sempre acreditei na força do amor. Quando era pequena me jogava debaixo da cama e lia as cartinhas que eu fazia para Carlos André. Queria beijar ele. Com tanta força que quebraria meus dentes, e os da frente dele. Aos 18 anos Carlos André disse que dormia na caixa e que meu beijo de quebrar dentes não iria ser dado nele. Eu queria ser homem. Pelo menos um agora tá dando o meu beijo nele. Claro que beijei outros depois, casei, descasei, e tudo mais. Mas nunca quebrei nenhum dente.
000Acho que ainda está lá. Com toda certeza ainda está lá. A borra está lá. Certo dia enquanto passava em frente às lojas do centro a caminho de lugar algum, tarde quente, seca, enquanto fumava um cigarro barato, notei uma presença no ar. Além do fétido cheiro característico do ser humano, percebi um fedúm ácido de algo diferente. Tudo muito estranho. Detesto cachorros, mas a culpa não é deles. Detesto gente, mas a culpa tão pouco é deles. O tempo não tem cheiro. Nem sou eu. Paro. Paro imediatamente! O maldito cheiro me persegue, me invade, me circunda, tenta me devassar, me despir, me estuprar. Calor desgraçado me molha as roupas. Permaneço parada. Imploro que vá. Vá! Vá pra longe cão miserável. Vá para longe sangue de cão miserável. Sabor de enxofre! Capeta satanás! A essas alturas meu cigarro terminara. Um rubor me dominava, tudo rodou, até o chão. Tentei me segurar nas pernas brancas, tonteei. Pára, sou racional, pago minhas contas, sou branca, filha de homem. Pára! Senti minha civilidade abatida. E como por um expurgo, talvez pelo fato de o coisa saber agora que pago minhas contas, sou branca e filha de homem, ele parte. Graças a deus. Recomponho-me, retoco o resto da beleza invadida que me restou naquela rua no centro, em meio a tudo e todos. Em meio a tudo e todos fui possuída por uma força estranha, objeto mal identificado, parte de mim sei lá, morador de rua talvez, calor do dia quem sabe. Recupero o fôlego e parto, meio errante, mas certa do destino. Parto dali, daquele lugar sujo que me feriu, me sujou e ofendeu. Está lá, com toda certeza ainda está lá, posso sentir, posso até ir lá comprovar, mas sei, que está lá. Sou eu, eu! Sou a borra, a borra do meu cigarro que caiu naquela rua, durante tudo. Durante um momento sublime a borra caiu. Caiu no chão úmido e fétido enquanto tudo rodava, o chão tremia e as palavras criavam asas. Sou eu. É como sou. Como me encontro exatamente agora, naquele chão enquanto tudo passou. Não há como me recompor. Irreversível. Se abrir os olhos posso sentir os gosto do meu sangue que jorra. Sinto na pele. É ácido.
000E agora como tudo já está pronto. Como a rima está rimada. O conto perfeito. A poesia chorada. Como tudo está pronto eu vou.
000Não corro. Respiro baixo. Posso sentir a vida entre os meus dedos. Agora. Sim. Tudo está aqui. Posso até sorrir. Te contar o que vi. Me mostrar para todos. Sonhar. Eu vôo. Eu vou. Ele está lá. Me espera. Me espera! Não há dúvidas no amor. Eu ando um caminho só meu, um caminho que sempre soube trilhar sozinha, estava escrito, sempre determinado. O tempo é bom. As coisas eternas. Pessoas também. Amo todas. Sorrio como quem sempre fez amor aos sábados. Como quem recebe de volta o triciclo e o amuleto de homens maus, como quem reza de tarde. Como quem trilha o caminho certo. Com quem sente o vento da noite. Como quem parte.
000Eu vou. Ao mergulho. Que o mundo é curto e o tempo...esse já não sei como fazer. Que diferença fez tudo? Não tenho marcas. Posso sentir o gosto do infinito. Do céu. Das nuvens. Voar com as andorinhas negras. Sorrindo entre elas, voando entre elas, sorrindo. Feliz. O sol é tão lindo. Eu vou. Entre as águas. O mar me recebe. Sou o barquinho da Clarice, mergulho profundo. Não estou só. Mergulho mais fundo. Azul. Todo o amor do mundo. Recebo a glória, a benção. A unção de Cristo. Sei de tudo. Sei de tudo agora. Tudo fez sentido. Até o que não fiz. Sinto agora: o certo, o errante, o julgado. Sorrio. A entrega é inerte, quase osmose. Sorrio e parto. A algo que me espera. E eu sei o que é. Sorrio e parto. Mergulho.
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