terça-feira, julho 24, 2007

I Parte

000A mala estava já quase pronta, ela tinha tudo: saudade, recordações, desejos. Só lhe faltava o que mais queria, a segurança de um consolo, um afogo de um qualquer que lhe garantisse porto seguro, mero efeito placebo, queria mesmo assim os ventos, que nunca dizem nada mais são eternos e seguros, empurram o mar e sempre voltam. Não tinha. Não era mulher de devaneios, nem de lembranças muito longas, saudosista muito menos, preferia massa e conteúdo: o peso da matéria, o cheiro do dia as migalhas de uma realidade, pena que tudo isso agora tenha que ser deixado. Não cabem na mala. E como tudo custou, sempre custa. A cada hora, a cada dia, plantar e semear o cotidiano, ou acham vocês que ele surge do nada? Nada disso, tudo custou muito caro (muito mesmo) e agora, bem, custará ainda mais voltar atrás. Desfazer as malas, despir as roupas e a coragem e olhar pro teto – não pra si mesma, não agora – dormir e acordar em casa, seu lar tão familiar, seu subconsciente pacífico externado e seguro, sua vida limpa e sem marcas, aquilo tudo seria bom. Bom para quem dorme, para quem não abre a janela, para quem pára, para quem não quer, não para ela agora, não mais.
000- Estou decidida. Estranha seu tom textual. Seria ela uma farsa? Uma porra de um texto didático e pausado? Uma atriz mexicana em ascensão?
000- Estou decidida, ou vai ou racha. Ri de si própria, a que ponto chegamos hein?! Uma velha gorda com uma mala cheia num quarto pequeno de uma casa suburbana, rindo de si própria em decadência. A que ponto chegamos? Pois então é isso?! Minha recompensa por tudo aquilo: castidade, colégio, feira?! Então é isso?! Cadê meu seguro?! Nem tempo pra sonhar mais eu tenho.
000Arruma a mala, fecha. Incrivelmente fecha fácil, nos filmes sempre têm de sentar em cima delas. Mala vermelha, - a única que tinha, baby. Passa pela sala, estante confere, televisão confere, sofá confere, cortinas confere. Tenta não olhar já olhando pras dezenas de badulaques e quinquilharias em cima da estante, marcas de uma vida toda, dedicação, apreço, limpeza, beleza. Eram tão belos, tão dela. Queria todos com ela para sempre. Estranho isso, mas se o mundo desabasse agora seriam os únicos objetos que levaria consigo. Marcas, os deixa pra trás. Fecha a porta da sala, passa pelo portãozinho, evita a olhadela geral de fora da casa, isso lhe causaria muita dor. Encontra Clóvis que parece adivinhar, ele sempre sente o que se passa, parece mais TV, sabe o que tá no ar e sempre a agrada. Ela evita olhá-lo nos olhos, se sente uma criminosa. Pega Clóvis nos braços, vê seus bigodes brancos, língua rosada, patas gordas (ele era gordo e bonito) o que dizer?! Não diz nada, não é tão louca, agora, pra andar falando com gatos na rua, não na rua! Não sente tanto por Clóvis, talvez nem sinta saudades (ã-han), no fundo tinha inveja. Toda noite ele saía, pulava pela janela e partia, ela ficava. Era ela que toda noite ficava, de manhãzinha, ele voltava. Como um bardo boêmio comia e dormia, ela não. Talvez agora Clóvis pudesse trepar mais já que tinha mais horas pra se dedicar, talvez agora Clóvis se tornasse mais valente já que com tempo muito mais livre poderia arranjar encrenca com gatos de rua, talvez agora Clóvis começasse a usar drogas...Quem sabe?!
000Que Clóvis se fudesse! Mas...o problema é meu. É minha cara, é seu. O mais óbvio é também o mais difícil de enxergar. É todo seu. Clóvis é gato, bicho, você uma atabacada de uma humana decadente. Clóvis é bicho, você é humana. Um ser humano que os quarenta anos passa mais da metade de seu dia falando com uma porra de um gato chamado Clóvis é que deve se fuder, só isso. O pobre do gato é que não tem culpa de nada, nunca teve, coitado, deve ter sido um tormento agüentar durante tanto tempo sessões diárias de novela mexicana (lobotomia), sem falar nas crises de choro em que ele serviu de apoio moral (um gato de apoio moral...Meu Deus!), e das diversas vezes que apanhou por pura inveja (ou você não lembra: você chutando o pratinho dele enquanto ele tentava comer sua ração dignamente, ou quando VOCÊ, lembra?, empurrou o focinho do bicho dentro do prato de água com raiva, sem falar nos tapões que levou diante da TV por nada, na vez que você trancou ele na rua....se fosse listar tudo...vixi.) Entendeu mon amour, você é a lesada da estória, o gato não tem culpa nenhuma no cartório, culpa de nada. Clóvis se esfrega em suas pernas, mendiga carinho, ela abaixa: – Adeus Clóvis, espero que o mundo não seja cruel com você. Espero que você se saia bem, um dia eu volto pra te ver, vai pro mundo, vai ser livre. Clóvis não ouve, ele é um gato, e continua se esfregando nas pernas dela, leva um chute tão miserável que passa um tempo pra se recompor e fugir. – Vai embora desgraçado, eu já falei.
000E ele vai, ela também. Corre pra pegar o ônibus. Se arruma na cadeira, olha em volta pros suburbanos, é uma vitoriosa, deixou tudo aquilo pra trás, é melhor que todos, venceu na vida. E o ônibus parte, deixando pra trás não só estrada, mas centenas de fagulhas de vidas e de histórias, tudo bem que nem todas são heróicas nem belas, mas são histórias e histórias são histórias, não podem ser ignoradas. A cada solavanco do ônibus, ela se sente cada vez mais vitoriosa, vai, de solavanco em solavanco, arrancando partes podres de si, se tornando borboleta e se renovando, pelling espiritual, catarse no busão. Dobra a esquina e parte. Já não é a mesma.

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