sexta-feira, janeiro 05, 2007

1984 de George Orwell


Orwell em sua obra-prima “1984” nos mostrou de forma abundantemente metafórica o mundo em que estamos. Por meio de termos duplificados e se utilizando de artifícios dúbios, jogou com os dados do sistema e criou não um cenário utópico de ficção científica, mas, um plano real e humano, só que, um plano em que as coisas são mais claras e muito mais expostas. Riu de nossa enorme idiotice de não ver o óbvio, o que tá na cara e por fim, chorou, com certeza, por nossa natureza e nosso futuro. Cruel, real, e autêntico.
Tudo bem que suas qualidades de escritores são poucas, o que é visível principalmente nos trechos em que precisaria de mais humanismo. Tísico e duro, não são qualidades para um escritor, e seu defeito tolhe da obra o algo mais. Mais Orwell é hábil e a complementa com o que sabe fazer bem, criar subterfúgios e pequenos (e destrutivos) diálogos psicológicos que deixam qualquer um com o cérebro torrando durante horas, dias e meses.
Num balanço final, “1984” é uma bíblia. O livro mestre pra quem quer começar a entender o que o cerca. O passo inicial pra uma concepção que fuja do radicalismo esquerdista idiota e sem base e do discurso socialista furado que cai por terra ao menor diálogo. Tenho certeza que essa foi a intenção de Orwell, disciplinar e abrir os olhos de novos seres mutantes da realidade, um livro subversivo e uma ferramenta contra o poder ou ao poder. E pra isso seu livro é Excelente !
Como falei que Orwell é um mal intérprete de sensações humanas e de diálogos realistas, transcrevi a parte em que ele mais obtém êxito nisso. Nesse trecho pode-se ver um jogo de emoções fortes e que muitos escritores renegariam pelo simples fato de que constrange o leitor mais sensível. Um trecho que considerei forte e contundente e que poderia muito bem ser uma transcrição de um fato de nosso país hoje, e não trecho de uma obra.

“Um dia, foi distribuída uma ração de chocolate. Havia semanas ou meses que não se via chocolate. Winston lembrava-se com muita clareza daquele precioso pedacinho de chocolate. Era uma barra de duas onças (naquele tempo ainda se falava em onças) pra os três. Evidentemente, devia ser dividida em três partes iguais. De repente, como se ouvisse a voz de outrem, ele se ouviu exigindo, com voz grossa e forte, que lhe dessem a barra toda. A mãe respondeu-lhe que não fosse guloso. Houve uma longa e incomoda discursão, que durou horas, com uivos, gritos, lágrimas, queixas, acordos. A irmãzinha, agarrada à mãe com as duas mãos, exatamente como um filhote de macaco, olhava-o com grandes olhos doridos. Por fim, a mãe quebrou a barra em quatro pedaços iguais, dando três a Winston e o último a menina. A garota apanhou e ficou a olhá-lo, feito água parada, talvez sem saber o que fosse. Winston observou-a um momento. Depois de um bote repentino e célere, arrancou o pedaço de chocolate da mão da irmã e correu para a porta.
- Winston, Winston! – chamou sua mãe. – volta e devolve o chocolate de tua irmã.
Ele parou, mas não voltou. Os olhos ansiosos de sua mãe o fixavam. Naquele momento ela estava pensando na coisa que ele não sabia o que fosse, mas deveria acontecer. A menina, consciente de ter sido furtada, gemia, debilmente. A mulher passou o braço em torno da filha e apertou-lhe o rosto contra o peito. Naquele gesto havia algo que revelou a Winston: sua irmã estava morrendo. Fez meia-volta e disparou escada a baixo, o chocolate a melar-lhe os dedos.
Nunca mais tornara a ver sua mãe. Depois de devorar o chocolate, sentira-se um tanto envergonhado de si mesmo e ficara na rua várias horas, até a fome lhe indicar o caminho de casa. Quando chegou, a mãe desaparecera."


1984 / George Orwell; tradução de Wilson Velloso – 18ª ed. – São Paulo: Companhia editora nacional, Ed. Nacional, 1984. Págs. 154 e 155.


obs.:
1 - O filme "V de vingança" é totalmente baseado no livro, mas...o livro é bem melhor e muito mais realista no começo, meio e fim.
2 - o livro inspirou um comercial da Apple que foi dirigido por Ridley Scott. O comercial só tinha 1 minuto, mas foi o necessário pra torná-lo uma lenda no meio publicitário e ser considerado o melhor comercial de todos os tempos. Explosivo, dizem os críticos!
3 - O tema do livro é atualissimo nos dias de Big brothers, alias, esse termo foi criado neste livro.