quarta-feira, agosto 22, 2007

Parte II

000Naquele momento lembrava de si, e isso não era bom. Se queria regenerar, teria de manter-se limpa. Casta do passado.
0000- Senhorita! Senhorita!
000Era uma tola, boba mesmo. Vivia apaixonada pelo mundo e seus amores. Sentia-se tocada por baixo quando lia Alencar, quando beijava Seixas e o perdoava de todo mal cometido. Não se reconhecia em Aurélia, ô mulherzinha fria mal amada. Em suas cartinhas rosa de amor, sentia náuseas de ansiedade diante do beijo que nunca receberia. Juntava dentro de si, como um pássaro, elementos líricos que compusessem a paz perfeita. O que queria era amor. Nunca recebeu de volta o que empenhou à sua juventude: sua beleza, seus poemas, seu intelecto, seu comedimento...não agradaram ao mundo. Resultaram em dor e solidão cada vez maior. Nem o beijo, nem o amor, nem a amiga...nunca teve nenhum dos elementos que considerava fundamentais a uma vida feliz de uma garota feliz. Agora, relembrando tempos em que escrevia poemas de paixões latentes, vê como eram tolos, como eram mal escritos e como a faziam parecer ridícula. Agora, relembrando tempos em que escrevia poemas de paixões latentes, sente que cada carta não lida pelo seu amado, cada beijo não recebido e cada dia em que rezou para o tempo passar, tudo isso a faz mais forte. Agora, relembrando tempos em que escrevia poemas de paixões latentes, vê como amou, e se não recebeu absolutamente nada em troca, se não recebeu nem uma migalha do milhão de amor que empenhou – que se dane! Mesmo assim ela amou.
000Se o dia for de chuva, que raie o sol incandescente dentro de mim. Se o tempo for de trevas, que o universo se converta em luz dentro do meu universo. Cada lágrima que rolar, que se converta em força. E não será em vão, nada será em vão.
Certo dia, daqueles cinzas que se amarram os ventos, de um frio molhado, pela janela da sala de aulas, eu via a rua. Recostada na banca, sentia que o mundo ainda não acordara para o dia. Era ainda cedo da manhã. “O melhor horário para se aprender”, quantas vezes minha mãe ainda repetiria isso?! Nem imagino. Viu na TV, pesquisas e tal. Ao olhar em volta, sabia que não era a única que pensava aquilo sobre o dia ainda dormir, todo mundo com cara de estudante, cara amassada. Deviam compartilhar com minha opinião em relação às tais pesquisas. Me sentia ainda com sono, os livros tinham cheiro esquisito de manhã. Na aula de literatura, fui para a Patagônia, para Galápagos e Fernando de Noronha com os golfinhos. Vi na TV como eram lindos. Queria ser um agora mesmo, voar em alto mar, sem destino. Mas já pensei no caso e não é uma boa idéia. Vi que se fosse escolher ser um bicho, iria preferir ser humano mesmo. Peixe é livre, mas é pescado; ave voa, mas é abatida a tiros; ursos viram casacos e gente...pelo menos gente não vira casaco, vira outra coisa, sei lá, gente leva tiro, mas pelo menos tem televisão.
O professor fala de um cara, um tal de lá pras 1800. Nem quero saber, tô ranzinza. O que um cara de lás 1800 tem pra mim, pelo menos é bonito?! Se for tudo bem.
Lá vem ele pro meu lado, vira, vira, será que ele num vê que eu num penso direito tão cedo?!
0000- Senhorita. O que é Parnasianismo?!
Parnasianismo?...Sei lá o que é Parnasianismo. Num sei...num lembro. Quê isso meu deus?!
0000- É, um estilo literário.
Ele não é bobo, quer me desafiar. Acho que errei.
0000- Sim, mas como assim?! Como se dá?!
Aí fudeu, o “ismo” dessa bendita palavra já me salvou: ismo de romantismo, bucolismo, realismo. Chutar que isso tem haver com escola literária é fácil. Mas o que é...ai num dá. Pior que a palavra não dá pista, Parnasianismo não deve vir de nada, deve ser africana ou russa, ou ainda a porra-loca do francês. Nunca vi essa palavra em canto nenhum.
0000- Não sei não professor.
0000- Não sabe?! Avisei que esse era o assunto dessa próxima aula não avisei?!
0000- Sim.
000Se é o que ele queria conseguiu. Alguns, que ainda estão acordados, riem. De mim claro. Curtem ver a queda de um mito, são iconoclastas por natureza. Um dos ratos da sala levar reclamação? Deve ser doce, nunca riem dos outros, não tem graça. Por que vocês acham que todo mundo quer ver os Estados Unidos fudido?! Porque ele é o mais rico, mais poderoso, mais influente....ninguém tá nem se lixando pra fuder a Colômbia ou o México, são peixe-pequeno, não importam. Eu sou os Estados Unidos, exerço ódio nos burros. Inteligência reflete orgulho, soberba, eu sou alguém que leu demais. Tornei-me impermeável a sentimentos mundanos, nunca penetrarei no mundo deles (e como eu queria!). Do mesmo modo, nunca serei penetrada. Vejo nos filmes, tá tudo lá, vou ser a virgem nerd que sabe de tudo.
Um povo que acha que é perfeito. Foi por isso que fui humilhada?! Droga, Cruz e Souza me paga. Cisne negro?! Quero que ele se foda, com a turma dele inteira.
Volto para casa insatisfeita e sem planos. Subo pro meu quarto e me jogo na cama. Eu gosto é do estrago. Não tenho. Levei chuva, me molhei por fora, queria era me molhar por dentro e que tudo me levasse. Pela janela a chuva é forte, vejo folhas sendo arrastadas pela água, como minhas dores. Meu coração é limpo, nunca guardo rancor. Foi a forma que arrumei para me manter viva, e perfeita para quando Ele chegar. Tenho que ser saudável e límpida e, como a água, me deixar ser absorvida até a alma. Dores minhas só me farão ser pesada e rubra, me livrando do peso renovo minha alma a cada dia. Pois pesado e rubro é o sangue, triste e cálido o corpo. Graças dou ao Senhor. Mas sempre fica alguma coisa. Rezo para meu amor chegar logo, e ele virá. Me salvará das trevas e me carregará nos ventos por campos de trigos sob o sol, o cheiro é de alfazema com toda certeza. Se não houver campos de trigos pelas redondezas, eu mesma planto, faço tudo: arranco o sol do inferno que seja, semeio cada punhado de cereal, fabrico cada gota de alfazema, rezo pros ventos, empacoto minha alma. Tudo pronto para ele chegar, já faz tempo. Ele demora, mas ele vem, posso sentir. Como o dia que se aproxima.
000Clichê?! Que seja. Não estou afim de criar novos caminhos: nunca tive coragem, nunca ganhei primeiro lugar em nada, não falo outra língua nem posso ter o que quero. E agora, nesse momento acho que meu desejo não é assim tão absurdo, não quero o mundo, não quero mudar nada, só amar.
000“A coisa mais importante que se tem a aprender é amar. E ser amado em troca”.
000Às 4 horas naquela casa, sinto, com o sol batendo no telhado, que amar implica, em si, em coisas absurdas e entregas que eu ainda não suportaria. É pesado olhar sobre tudo e se enxergar no meio daquilo. Eu não era especial, não podia me proteger em ilusões e dramas cotidianos. Amar implica, em si, em coisas absurdas e entregas amargurantes, eu não suportaria. Tenho na condição a fraqueza. Tinha naquele instante, visto a face do Diabo, a verdade. Não deveria ter ido fundo, não merecia. Vi uma luz tão intensa. Meu corpo não suportou. A partir dali, não mais me iludi, não mais sonhei, nunca mais fui feliz. Nem mais a lua era sedutora, o mar misterioso e os dias possibilidades. Fui seca quando não devia. E acabei assim, fechando todas as janelas da vida que não mais jorrava em pulsos apenas chorava em agonia.
Fui eu. Fui eu mesma quem se matou naquele dia. A vida é de uma dor tamanha. Boa parte da alegria e da felicidade se encontra no sentido de saltar dentro de abismos sem medo, arriscar definitivamente. Não pulei. Sempre soube do perigo. Recuei. Perdi tudo no jogo sem ao menos arriscar. E agora...o mundo não dá voltas.

000Lágrimas mancham-lhe o rosto. Lágrimas quentes de uma dor antiga, sangue recolhido. Não devia. Naquele dia, o sol levou consigo todas suas cartas de amor, todos seus versos juvenis sobre se entregar e toda sua juventude. Foi pai. Duro. Irreversível. Cortou-lhe a felicidade pela raiz, mostrou-lhe a vida. Não queria. Foi ali que sentiu de uma só vez que perdera seu amor (que nunca teria ok), mas, a possibilidade já era amor. Amava sentir náuseas de expectativas, de perder o chão, e sangrar por dentro. Estava viva, agora morta. Não tinha nada. Recompôs-se, ou tentou. Dores sempre deixam marcas. Algumas nunca cessam.
E como dois e dois são quatro, fechou mais uma janela, desbravando um futuro só seu. Não importa. Sinta o vento que chega a me possuir, sinta a pulsação da hora e a dor de permanecer enquanto tudo passa. È volta, incandescência e entrega - assim é a vida. E tudo não está completo, como dois e dois são quatro. Nada é mais simples, não há outra norma, nada se perde tudo se transforma.
Encheu um copo, e mesmo não gostando do vinho bebeu até o fim já que o copo já estava cheio. Completo e indesejado, mas vinho.

000Naquele ônibus, a tarde partiu e chegou à noite. Seriam dias de uma imensa espera, longos dias, mas suportáveis. Tinha planejado tudo, mania antiga essa. Traçou o rumo que seguiria naquele ônibus barato, quanto gastaria, quanto tempo levaria. É claro que tudo foi meio diferente já que tinha uma nova perspectiva. As horas naquele ônibus eram previsíveis e de antemão determinados, cada vez que parava era hora: de ir ao banheiro, tomar banho ou comer alguma coisa em qualquer lanchonete que tivesse. Nunca dava pra fazer mais de uma coisa, tinha-se de escolher. Antes da viagem não tinha previsto isso. Isso tudo era no mínimo engraçado e constrangedor, mas válido. Se soubesse antes é claro que não pagaria pela viagem, não antigamente. Hoje, mesmo se soubesse aceitaria e não se importaria com o que passaria durante longos 6 dias de estradas esburacadas e noites inseguras por BRs. Pensaria bem e decidiria que com certeza havia formas mais seguras e agradáveis de chegar a qualquer lugar – mas que se dane. Nada de pequeno importava. Não agora.
Mesmo assim se sentia estranha, como se portadora de um mal maligno e transmissível – um câncer que lhe corroia por dentro ou como se vítima de males da vida. Grávida da morte. Tinha feições derrotadas, para um olhar menos minucioso, mas superior, aos treinados pela vida. Era a própria rainha da Inglaterra, qualidade dos mortos ou quase.

000A ausência não se baseia na falta, mas no complemento. Não é no menos, mais sim no mais. É quase a mesma coisa, mas não é. Era para tudo dar certo, mas não deu. De vez em quando na vida as coisas mais lógicas não fazem sentido. Tava tudo pronto, mas a vida azedou. E tudo foi deixado para trás, como um leproso, deixado para depois, como um banquete, e cruel, como só a vida é. Teve-se de despir as maquiagens, os trajes. Ficar a sós depois do show, consigo mesma. Olhar para dentro é sempre mais difícil, trajeto oposto, caminho de pedras. Entre pratos, panos, armários, janelas iluminadas e guardanapos, ela era indistinguível. Era pura osmose, não mais temia os dias comuns, havia se transformado em seu meio. Caseira e diária como só ela, foi deixando para o dia oposto sua vida. Enquanto os anos passavam, o magma endurecia.
Era já quase cristalina quando na seção de limpeza, numa manhã quente de quinta-feira, teve uma leve tontura. Estava em suas compras de quinta, carrinho em um punho, listinha noutra, martelava preços e pechinchas. Queria o menor de tudo, a vantagem e a forma mais econômica – sempre. Passava por cada sessão daquele supermercado com um olhar crítico, sempre examinava – não se sabe porque – de forma minuciosa a lógica na organização de produtos numa prateleira ou outra e não deixava passar em branco a mínima desordem no mar de etiquetas de preços. Já se pegou várias vezes criticando um desvio e outro, arrumando e corrigindo as etiquetas de sabão em pó e café. A semana tinha sido boa, o preço do feijão deu uma queda, mas aquela temperatura não. Desde segunda um mormaço infernal se apossara das ruas, o sol impiedoso raiava despoticamente e esmagava qualquer possibilidade de vida humana, pelo menos assim pensava ela – é impossível viver com um sol desses, queima o juízo. E entre quedas e aumentos foi tomada por um enorme calor que veio de fora e penetrou-lhe a alma. Calor danado, repulsivo e miserável. Quase comia-lhe os ossos, sentiu náuseas e o chão tremeu. Não se conteve em pé, e diante da montanha de detergente verdes de eucalipto, tombou como para um salto.
000Finalmente socorrida com a devida pompa, acordou cercada por domésticas e donas-de-casa que se convalesciam da coitada que caíra. Doentes sempre estimulam a piedade e a condescendência alheia, por isso quando pequena fingia de vez em quando uma dor ou outra só pra não ir ao colégio. De vez em quando dava certo, mas acho que minha mãe sempre sabia, devia ser uma experiência extraordinária para ela - ver até que nível chega a canalhice ou degeneração moral da sua filha tão pequena e já corrompida. Levantou imediatamente daquele chão, se recompôs, notou que estava agora na sala da gerência. Não gostou de pensar que provavelmente foi carregada por todo supermercado como uma velha enfartada (ou como um troféu) nos braços de desconhecidos (o cortador de carne e o homem do queijo) e finalmente para enterrar de vez a faca no peito de sua dignidade, estava com a blusa e o rosto molhados. Provavelmente algum sábio da medicina deva ter opinado sobre jogar água na “cara da coitada” ou “dar uma sacudidinha”, enfim, em todo caso, sua dignidade havia sido permanentemente abalada ali, e ela não tinha visto nada, nunca mais pisaria naquele supermercado, não enquanto ainda fosse mulher. Afinal, era uma mulher ou um rato?
000Apesar de doentes causarem uma sensação de doação e fraternidade nos entes, também carregam em si (como uma praga) um maldito estigma pesado e oneroso de serem menores, serem gente miúda e de pouca fibra para a vida, devem ser poupados de toda força e mal. Como aquelas mulheres brancas (tão brancas que chegam a ser translúcidas) da Idade Média que flanavam o dia todo ao som de poesia e harpas, só esperando o dia de morrer de tuberculose, enquanto os servos sujos e pretos só não morriam de tuberculose porque a fome os matava bem antes. E esse pagamento pelo bem recebido, ela não queria. Nunca se dispôs a pagar esse preço, servir de base para ascensão moral dos outros era demais, era se anular por completo, virar escada. E ela não sabia se queria ser escada. Dandara? Sei não! Não tinha se permitido chegar ao fundo dessas questões de carma, do mesmo modo que as ligadas à eutanásia e psicanálise. Eram essas questões que incomodavam e, principalmente as de cunho psicológico e filosófico; poderiam ser caminhos sem volta, não se arriscaria nessas prisões.
000Via em sua casa apenas rótulos, coisas que se vendiam e perdiam o sentido ao serem compradas. Não queria o fácil nem o prático, e apesar de durante tanto tempo ter sido letárgica e inerte a dor, causara feridas profundas e dores avassaladoras. A busca por não sentir dor já dói de forma bastante peculiar a ponto de ser sentida bem alto. Sentia tudo aquilo. Não havia passado ilesa por tudo aquilo.

Ecos d’Alma - Augusto dos Anjos

Oh! Madrugada de ilusões, santíssima,
Sombra perdida lá do meu Passado,
Vinde entornar a clâmide puríssima
Da luz que fulge no ideal sagrado!

Longe das tristes noutes tumulares
Quem me dera viver entre quimeras,
Por entre o resplendor das Primaveras
Oh! Madrugada azul dos meus sonhares;

Mas quando vibrar a última balada
Da tarde e se calar a passarada
Na bruma sepulcral que o céu embaça,

Quem me dera morrer então risonho,
Fitando a nebulosa do meu Sonho
E a Via-Láctea da Ilusão que passa!

(Augusto dos Anjos)