domingo, setembro 30, 2007

Renato Russo - A Tempestade

























"O meu maior medo era o de não ter tempo de dizer, com todas as letras, com toda força, Te Amo! O medo de não mais sentir seu cheiro, beijar aquela boca, ouvir a voz suave e grave, acordar sabendo que me arrancaram um pedaço. Queria livra-lo do peso de tudo. E amá-lo eternamente, só pra mim, no meu universo."

000000Aquela tempestade não passaria. Jamais. Duraria uma eternidade. Arrastara com suas águas negras e pesadas, ruas, pessoas, casas, cidades, a água. A tempestade estava consumada dentro de mim. Quem eu sou. A tempestade devassava meu interior. Queria ver todos, desgraçados da chuva ácida que me corroia por dentro. Que todos sentissem a dor da morte. Se rasgassem do desespero de viver. Como eu queria. Queria corroer o mundo, destruir o amor com a chuva ácida que me destruía por dentro. Banho de sangue por dentro.
000000Aquele papel, mísero, arrancou de mim tanto que nem sei descrever. Me destruiu tanto que nem explicar. Me socou mais que a vida. Roubou tudo que eu tinha. Me espancou como um condenado. Entortou minha voz. Senti medo como uma criança. Chorava por dentro como um rio. Aquele papel mudou tudo completamente tudo. Transformou-me em qualquer coisa. Desfigurou tudo. Matou o meu amor, que a tanta esperava. Fiquei sem norte sentado naquela cadeira, naquele corredor de hospital, em meio a nada. Eu era um nada. Nem sei como me desgrudei dali e parti. Me dei conta do fato em casa, no meu apartamentinho modesto e contido. Apartamento de vó esperando netinho. Só faltou um gato. Quando cheguei em casa sentia o peso de
tudo, a xícara, o café, o bule, a mesa. Tudo ficaria, eu não. Tudo bem. Nem o dia dura pra sempre.
000000O dia não é bom como cantam os românticos. O sistema solar em si não é bom. Entendi uma tarde dessas o mistério de tudo. O dia, como parte, é em si belo e magnífico, cura as feridas, brota as flores, rega os corações de ar. Mas no fim da tarde, quando o amor começa, ele parte. Parte sob o pressuposto da rotação, de um giro infinito e involuntário. E sob o comando de um rei maior ele parte pra longe, lá pro Japão. Mas não rola! É tudo balela! Já saquei tudo! Nada de força-mor, nada de rotação infinita. O dia parte com seu amante sol só por orgulho. Sempre sente prazer em molhar os rostos bobos e os corpos de sexo em êxtase ao contemplá-lo e parte. Mero desdém, orgulho, pirraça. Vai pra longe. Fora de alcance. Vai para mostrar que é maior, que pode partir para onde quer que seja. É eterno, belo, impávido, intocado. Esse é o dia. Dura o tempo do amor. È o próprio amor e mostra sua força total quase de fazer cegar. Mostra-se aos pouquinhos, só 24 horas. Tempo para se deixar viver os homens, tempo para que eles, mera carne tola, não se apaixonem pelo deus, pela eternidade, pelo dia. Mero tempo de sanar os feridos, brotar as flores, lavar as almas, florescer amor. Mero dia.
000000A noite se aproximava, não tinha resposta para mais nada. Não queria ser criança, buscar colo e se entregar ao vil sentimento de pena de mim mesmo. Quero vencer, nem que seja a vitória. Vencer na derrota de viver a vida em toda sua desgraça e decadência. Sentir a dor necessária, que fosse pesada e ferina, que fosse. Queria fumar um cigarro. Estou muito nervoso pra isso. Queria ir pra varanda, ver as luzes dos apartamentos, os casais namorando na varanda vizinha, o menino com o violão e os amigos do lado, a tia da televisão, a luz sempre acesa, o morador sempre ausente. Não me movi do sofá. Queria olhar ao redor e ainda ver, de relance, minha televisão modelo antigo, meu elefante de porcelana, meu cinzeiro de metal sobre a estante. Queria sentir tudo ao controle, mas não estava. Nem eu estava. Nem eu estava aqui.

000000As semanas passariam da pior forma, lentas e reflexivas. Cheias de visitas com milhares de dedos, mesmo que sem querer, e com pausas longas entre atos desesperados. Minha irmã vinha, sempre, trazia comida, botava na geladeira, mandava uma senhora limpar, nem tinha muito o que fazer, mas limpava. Depois que a senhora partia, ela sempre me olhava, sempre entendi o que ela queria só com o olhar, desde sempre. Me olhava fundo, não na alma, eu não deixava. Sempre fui arredio a sentimentalismo...puts, logo eu! Ela me olhava como uma mãe, não com pena, mas com um amor estranho de luz e colo. Me incomodava. Ela ficaria. Eu a deixaria. Eu a amava. Ela sempre partia deixando instruções de descongelamento e tal...quem sabe eu não faço o mesmo.

000000Aquela noite foi terrível, não dormi nem um segundo. Será que aquilo tudo seria assim? Estou molhado de suor, quente, fervendo. Deus! Estou num mar de confusão. Tudo em mim quer brotar na hora errada. Como um jacarandá na tigela. Quebrando tudo, rasgando a carne, as paredes, o ventre, rompendo a câmada de ozônio, rompendo a barreira do som... quero divisar fronteira com o infinito. Quero me rasgar dentro de mim. Não suporto a expansão de mim mesmo dentro de mim. O grito que escorre é um filete de alma que foge para longe. Que busca paz entre os mortos, pois os vivos guardam a dor e o ressentimento. Queria encontrar outra forma de arte, gritar sem palavras coisas indizíveis, inaudíveis. Queria pintar no universo profundo sem palavras e formas. Alcançar o lirismo explosivo do amor sem toques. Mergulhar de crânio na morte dos erros. Violar os sagrados cânones da música maldita do tic tac, pirar entre uma convulsão e outra.

domingo, setembro 02, 2007

Separados no berço - Wagner Moura & Gerard Way (Chemical Romance)




Lições de titio Schopenhauer

"(...) por mais maciço e imenso que seja este mundo, sua existência depende, em qualquer momento, apenas de um fio único e delgadíssimo: a consciência em que aparece."

Quid superbit homo, cujus conceptio culpa,
Nasci poena, labor vita, necesse mori?
(Por que há de se orgulhar o homem?
Sua concepção é uma culpa,
o nascimento, um castigo
a vida, uma labuta
a morte, uma necessidade!)

Matt Groening

"Parte da diversão de estar vivo é saber que se está aborrecendo outra pessoa."
( Matt Groening )

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Mergulho

000Todo dia que passou. Tudo o que ainda está lá sobre a mesa. Minha identidade, a bolsa, o gato, jóias. Tudo o que ainda chegaria, tudo que começou. Brindemos. A tudo que fomos e tudo o que pomos sobre a mesa. Farta, de tudo, cheia de vida e experiências. Que não se negue nada. A ânsia de vômito e o prazer, o deslocamento e a inércia, a frigidez e o solavanco. Não se negue nada.
000Hoje, somos bem diferentes do que em qualquer outro dia do universo. Melhores o possível. Fomos sempre diferentes de tudo que sentimos, não nos vemos, nem na alma, nem nos sonhos, não podemos nos sentir. Pura metafísica, física mesmo, alucinações letárgicas, litúrgicas, sensoriais. Sinestesia. Sempre. Sempre quis me julgar por fora, de longe, intacta de erros e ganhos. Não tenho asas, fico.
000Tentei apagar minhas marcas, perdi tempo. Sou errada e a vida também, desde sempre gostou de mim, igual a ela, não durei, nem o tempo necessário de realmente ficar. Passei. Como o vento que sempre temi. Joguei com coisas que não conhecia. Perdi, obviamente tudo.
000Não me subestimei, nunca. Tenho dores maiores que o mundo, janelas me feriram de forma irreversível. Irreversível – a madeira. Incrível, nunca vira água, é dura e não entorta, não vira água nem no fogo. Irreversível, sou papel. Desde tempos não danço direito, não jogo direito, não ando direito. Manco entre uns e outros, mendigo sossego nem que seja para corpo. Se me restar algo que se use na evolução do mundo, dôo tudo à evolução de algo que seja móvel e virginal, que passe e fique.
000Desde tempos remotos dentro de mim, a gravidade de tudo me joga, contra a parede, contra o teto, contra o chão. Não suporto. Bridget Bardot veio me visitar. Me trouxe licor de ervas, disse que ficarei boa, no final da semana. Acho que passarei o dia lendo, os restos de páginas finais. Tudo tem um fim, o livro acabará amanhã. Chorarei feito criança, antes de adormecer sobre minhas lágrimas, secas de um tempo bom.
000A xícara estava quente, porcelana branca, asa curta, café tava quente. Senti a devassidão de tudo no líquido quente que me invadia, café negro feito de sangue e dor. Paris. Humprey Bogard. Sempre achei que a bonequinha de luxo usasse drogas, inveja. Paro de ser boa. Calo minha boca, fluxo de merda e nojo. Não tenho mais bons dias a tempos, nem noites curtas. Paro de me vestir, viro cachorro. Manco, ele sempre estava lá. Quero de volta meu amuleto, Billy Zane roubou. Quero de volta meu triciclo, Patrick Swaze roubou.
000Faça-se luz. Nem naquela noite estranha tive sorte. Todos sorriam, aves torradas recheavam a noite sobre a mesa. Uva, linhaça, romã, champagne, estava tudo lá. Só o que me resta ainda é essa vontade de cuspir. Gôsto de plástico, de Sorriso, de anticéptico com álcool. Acorda pra cuspir vagabundo! Queimou minhas axilas, minha gengiva, aquele álcool todo; no anticéptico. Sempre acreditei na força do amor. Quando era pequena me jogava debaixo da cama e lia as cartinhas que eu fazia para Carlos André. Queria beijar ele. Com tanta força que quebraria meus dentes, e os da frente dele. Aos 18 anos Carlos André disse que dormia na caixa e que meu beijo de quebrar dentes não iria ser dado nele. Eu queria ser homem. Pelo menos um agora tá dando o meu beijo nele. Claro que beijei outros depois, casei, descasei, e tudo mais. Mas nunca quebrei nenhum dente.

000Acho que ainda está lá. Com toda certeza ainda está lá. A borra está lá. Certo dia enquanto passava em frente às lojas do centro a caminho de lugar algum, tarde quente, seca, enquanto fumava um cigarro barato, notei uma presença no ar. Além do fétido cheiro característico do ser humano, percebi um fedúm ácido de algo diferente. Tudo muito estranho. Detesto cachorros, mas a culpa não é deles. Detesto gente, mas a culpa tão pouco é deles. O tempo não tem cheiro. Nem sou eu. Paro. Paro imediatamente! O maldito cheiro me persegue, me invade, me circunda, tenta me devassar, me despir, me estuprar. Calor desgraçado me molha as roupas. Permaneço parada. Imploro que vá. Vá! Vá pra longe cão miserável. Vá para longe sangue de cão miserável. Sabor de enxofre! Capeta satanás! A essas alturas meu cigarro terminara. Um rubor me dominava, tudo rodou, até o chão. Tentei me segurar nas pernas brancas, tonteei. Pára, sou racional, pago minhas contas, sou branca, filha de homem. Pára! Senti minha civilidade abatida. E como por um expurgo, talvez pelo fato de o coisa saber agora que pago minhas contas, sou branca e filha de homem, ele parte. Graças a deus. Recomponho-me, retoco o resto da beleza invadida que me restou naquela rua no centro, em meio a tudo e todos. Em meio a tudo e todos fui possuída por uma força estranha, objeto mal identificado, parte de mim sei lá, morador de rua talvez, calor do dia quem sabe. Recupero o fôlego e parto, meio errante, mas certa do destino. Parto dali, daquele lugar sujo que me feriu, me sujou e ofendeu. Está lá, com toda certeza ainda está lá, posso sentir, posso até ir lá comprovar, mas sei, que está lá. Sou eu, eu! Sou a borra, a borra do meu cigarro que caiu naquela rua, durante tudo. Durante um momento sublime a borra caiu. Caiu no chão úmido e fétido enquanto tudo rodava, o chão tremia e as palavras criavam asas. Sou eu. É como sou. Como me encontro exatamente agora, naquele chão enquanto tudo passou. Não há como me recompor. Irreversível. Se abrir os olhos posso sentir os gosto do meu sangue que jorra. Sinto na pele. É ácido.

000E agora como tudo já está pronto. Como a rima está rimada. O conto perfeito. A poesia chorada. Como tudo está pronto eu vou.
000Não corro. Respiro baixo. Posso sentir a vida entre os meus dedos. Agora. Sim. Tudo está aqui. Posso até sorrir. Te contar o que vi. Me mostrar para todos. Sonhar. Eu vôo. Eu vou. Ele está lá. Me espera. Me espera! Não há dúvidas no amor. Eu ando um caminho só meu, um caminho que sempre soube trilhar sozinha, estava escrito, sempre determinado. O tempo é bom. As coisas eternas. Pessoas também. Amo todas. Sorrio como quem sempre fez amor aos sábados. Como quem recebe de volta o triciclo e o amuleto de homens maus, como quem reza de tarde. Como quem trilha o caminho certo. Com quem sente o vento da noite. Como quem parte.

000Eu vou. Ao mergulho. Que o mundo é curto e o tempo...esse já não sei como fazer. Que diferença fez tudo? Não tenho marcas. Posso sentir o gosto do infinito. Do céu. Das nuvens. Voar com as andorinhas negras. Sorrindo entre elas, voando entre elas, sorrindo. Feliz. O sol é tão lindo. Eu vou. Entre as águas. O mar me recebe. Sou o barquinho da Clarice, mergulho profundo. Não estou só. Mergulho mais fundo. Azul. Todo o amor do mundo. Recebo a glória, a benção. A unção de Cristo. Sei de tudo. Sei de tudo agora. Tudo fez sentido. Até o que não fiz. Sinto agora: o certo, o errante, o julgado. Sorrio. A entrega é inerte, quase osmose. Sorrio e parto. A algo que me espera. E eu sei o que é. Sorrio e parto. Mergulho.