quinta-feira, dezembro 11, 2008

2009

Welcome 2009, venha-nos com ares amenos, suaves, com cheiro de laranja, flor de maracujá e risos bestas. Venha-nos com abraços amigos, beijo na boca e muito o que contar a 2010.
Simplismente venha-nos - jovial e singelo como um ano bom. O resto a gente desenrola.

Abração 2008, você foi inesquecível (te amei cada dia, vivi tudo que tinha que viver, senti todas as dores que deveria sentir e se hoje não o tivesse vivido não seria metade do que sou agora. Muito obrigado por tudo. Parta como um parente amado, e que seja eterno na memória.)

Boas vibrações, até mais. Tudo de bom, muita paz, saúde e muito amor, de coração.

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Carmem

Carmem não era mulher de aceitar aquilo assim. Não daquela forma – nunca. Era mulher de ir às forras, de virar a mesa, de riscar a faca e mostra quem é a dona da banca. Não se reconhecia naquela situação, nem poderia.

Carmem Maria da Silva Gomes de RG e tudo. Gomes do último casamento, pelo menos salvou o Maria da Silva. Sempre ressaltava o Gomes, mulher casada e de respeito - não se tratava de uma qualquer. O marido se foi, o Gomes nunca!

Não se reconhecia naquela situação. Não!

Desde cedo sua mãe, mulher boa dona de bar, lhe ensinara como tratar com homem – rédea curta, perna aberta e olho mais aberto ainda. Pena que seus conselhos nunca lhe livraram de poucas e boas. Carmem cansou de vê-la levar surras e mais surras de homens de rua - paixões instantâneas de uma mulher solitária e fraca. Tudo sempre se resolvia nos fundos do bar, onde sua mãe, lavada de lascívia sempre se reconciliava com seus amores eternos de fim de dia. Dona Biu era mulher de homem, era bem chegada no produto. Era mulher de fibra e não estava nem a fim de abafar desejo. Sempre se resolveu, mesmo sozinha. Não havia homem que lhe bastasse, e nem queria, nunca quis, ter um só. Só tinha um compromisso e esse era com suas próprias vontades. Traçava seu próprio prumo, traçava todos. Não era facilidade, era praticidade.

De tudo levou a lição, nessa vida não cabe tanta pergunta, as coisas apenas são o que são. Não iria cair na mesma cruzeta do destino. Carmem não queria a herança de dor da mãe que sofria entre os engradados de cerveja e vinho barato, disfarçando a cara de mulher apaixonada pelo negro Tião atrás de um balcão. E que, sem riso nem flor, passou na vida como uma leoa sem ninho, sem nenhum pouso.

Não se reconhecia naquela situação que se encontrava agora. Não era ela. Não. Carmem debulhava o milho. Esparramava o trigo sobre sua cama e abarrotando a cara marcada, revirara a noite toda pensando no problema triste que tanto lhe afligia. Tomara o veneno, o vidro todo. Não havia mar que lavasse aquilo, nem um oceano. Era rocha cristalina em seu peito. Rocha de sustentação. Era amor. Caira na maldição de sua mãe. Já havia corrido um rio de lágrimas sobre o lençol casal de liquidação. Não passou. Não passara. Não passará. Não tinha bula, nem corredor. Não tinha cultura nem Virginia Woolf em quem se apoiar: Camões, Florbela, Vinicius...só Reginaldo Rossi. Nem tinha palavras... I love you, O amor é uma dor, Se amar é viver...queria transcrever, arrancar de dentro e expulsar as palavras que tanto sua língua recusava falar, aquilo lhe agoniava, era como falar sem palavras. Queria gritar, mas nem isso sabia. Queria falar num mandarim desgraçado o que entalava sua goela e a impedia de deglutir a respiração. Estava naquela cama havia dias, definhava de um amor podre e horrível. Era força inabalável, veio com tudo. Carmem pela primeira vez chorava como um animal recuado. Fora violentada por tudo de uma vez. Suas pernas sangravam em chagas profundas de um calor danado. O fogo ardia de dentro e lascava a carne de feridas, de brotoejas que lhe marcavam a pele. Todos podiam vê a qualquer luz, era amor naquela pele. Até sua cor pálida de doméstica de casa de família mudara completamente. Estava rubra e cálida, como seu coração de 27 que com mais um milímetro daquele amor com certeza explodiria.

Carmem pensava em morte. Solução inevitável. Pensava em Jesus, mas Jesus nunca trepou. Pensava em psicanálise, mas nem sabia bem o que era isso. Queria mesmo era vomitar aquilo, viu na novela, era bonito de se dizer.

Não tinha pedra de alicerce, estava só no meio daquela confusão toda. Dessa vez, super bonder e um jeitinho não a livrariam das conseqüências. Era Thércio o nome do problema, a maldição ainda desconhecida pela medicina. O homem que rasgava seu peito com facas sem consolo. Queria cuspir na sua cara e lhe dizer umas verdades. Cuspir na sua cara e falar tudo aquilo de podre! Falar todo tipo de palavrão que se sabe! Falar as do fim! Encher a mão naquela cara! Dar-lhe um tiro e arrancar aquele sorriso lindo que encantara suas noites e a enchiam de lágrimas os olhos. Estapeá-lo até a morte o peito enquanto tentava arrancar carícias sem que ele percebesse. Nem um oceano lavava aquilo. Thércio, hoje de novo, não a deixaria dormir nem à pau. Onde quer que fosse, pra onde quer que se virasse, na cama, lavando copos, varrendo embaixo do sofá, sorrindo na novela, na nota de dez reais, entre os melões na feira, não vinha outra coisa.

Carmem Maria da Silva Gomes, doméstica, solteira, pernambucana, falecida no dia 14 de maio de 2007, causa da morte: traumatismo craniano.

Carmem não achou Jesus, nem psicanálise.

Dedicado a Felipe

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O Filósofo [Thomas Bernard]

Às vezes, pergunto-me se é porque se ama demasiado a humanidade que uma pessoa se afasta dela para não assistir a sua deterioração. As pessoas decepcionam-nos sempre.
Quando penso no Filósofo, é esta idéia que se sobrepõe a todas as outras. Perdi as pessoas que me estavam mais próximas, ouvia-o dizer. Com a palavra próximas eu já sabia que queria dizer as que amara profundamente. Podemos dizer que passam a uma outra realidade sem tempo nem espaços definidos, podemos dizer até que nos ficam ainda mais próximas, no nosso cérebro. Não há maior proximidade que a do nosso cérebro. A autenticidade total. O desejo só nos limita e condiciona, afasta-nos de nós próprios, da nossa autenticidade. Mas ninguém nos consegue arrancar a este progressivo isolamento e as suas terríveis conseqüências.

Os maiores desafios estão dentro do nosso cérebro e não no exterior. Só descobrimos isto muito mais tarde porque nos afastamos da curiosidade inicial, essa é que é a verdade. Somos traídos pela ordem natural das coisas, da vida. O nosso cérebro é a chave da existência e não o disciplinamos, passamos a vida a armazenar informações mais do que supérfluas, anos e anos perdidos, todo esse desperdício. Para onde quer que nos viremos, sempre a mesma coisa, a repetição até a exaustão de toda essa mediocridade. Está tudo contra nós desde o primeiro instante. Ou nos conformamos ou estamos completamente perdidos.

Pensar que foi um simples acaso que me levou a conhecer o Filósofo e que esse conhecimento tenha sido determinante para a minha construção. E pensar que esse encontro casual se tenha dado na altura ideal para mim. E que esse acaso me tenha permitido refazer vários percursos em direções diferentes. Até mesmo a auto-disciplina que eu não sabia utilizar de forma criativa. Descobrimos um dia que devemos tudo, a própria vida, a alguém que por pouco desconhecemos. E que a vida é este constante passar ao lado de personagens essenciais a nossa construção. E essa terrível injustiça que eu nunca consegui aceitar, essa impossibilidade de mudar as coisas que para nós estão erradas e saber que temos de coexistir com essa realidade e que essa realidade nos é imposta desde muito cedo. O Filósofo mostrou-me, a meio do meu percurso, o meu verdadeiro rosto e todas as máscaras e papéis que tenho utilizado para sobreviver. O Filósofo levou a procura da autenticidade até as ultimas conseqüências. Nunca poderei aproximar-me sequer dessa idéia essencial de autenticidade porque vivo na maior simulação e tenho disso perfeita consciência. Desprezo-me por isso, mas não faço nada para alterar esse estado de coisas.

Pensamos que arrumamos tudo, passamos a vida a ouvir os outros e como eles arrumaram as coisas, a vida. Pensamos que eles têm razão, que eles sabem qualquer coisa de fundamental que nós ignoramos, vemos como se movimentam à vontade, a sua agilidade impressiona-nos. E iniciamos um caminho que não é o nosso, é um labirinto, um jogo em que perdemos sempre. Porque desconhecemos as regras do jogo ou porque uma parte obscura do nosso cérebro as rejeita completamente.

Que hipóteses tem um indivíduo de se manter igual a si próprio, e manter as suas exigências intelectuais, e manter a sua sensibilidade, numa sociedade que existe como poder do grupo mesmo que organizado na mais estranha loucura. A sociedade para defender a sua loucura é capaz da maior violência contra o indivíduo. Já o Filósofo dizia isto, que as pessoas que não se adaptavam as esta idéia do poder eram afastadas do grupo e neutralizadas, como loucas ou outras classificações do gênero. A maior parte das vezes referia-se à deterioração das coisas, das pessoas, ultimamente essa idéia era dominante. Obcecava-o a ausência de sensibilidade de algumas pessoas e a idéia dessas pessoas serem precisamente aquelas que mais influência têm na vida dos outros. Os actores de uma peça sórdida, dizia-me. É tudo risível, passou o Filósofo a dizer, as pessoas, as situações. Para onde quer que nos voltemos é tudo insuportavelmente ridículo. As pessoas que simulam são as mais óbvias, as mais autênticas são, no fundo, as mais complexas. Somos a espécie mais indigna que se pode imaginar. Utilizamos tudo em nosso beneficio, as coisas, as pessoas, os símbolos. Não respeitamos a sensibilidade dos outros nem o seu espaço nem suas idéias. Como é possível festejar o nascimento de Cristo quando sabemos toda a tragédia que se seguiu e da qual continuamos a ser cúmplices? Como podemos festejar o nascimento de um indivíduo que para se manter autêntico não pode sobreviver? A nossa espécie só sabe destruir da forma mais ignorante e violenta. E depois de destruir tudo o que é autentico serve-se desses símbolos da forma mais hipócrita e irresponsável. Vive-se na mentira e na simulação e tudo não passa de artifícios. Procura-se a máxima sofisticação e só se consegue a mediocridade. É esta a condição humana. O Filósofo falava cada vez mais freqüentemente em comédia. É tudo tão tristemente patético, dizia. Nunca percebi muito bem o modo como se situava nessa comédia. Ultimamente via-o verdadeiramente obcecado com esta idéia da insensibilidade da nossa espécie e da sua decadência inevitável. Penso que não tinha ilusões sobre as pessoas e que isso o desesperava mais do que tudo. Estou convencida que a morte é a única saída com dignidade deste labirinto. Mas evitamos essa decisão e agarramo-nos a uma existência desinteressante e inútil pelas razões mais mesquinhas e covardes. Nada tem sentido, é um encadeado de ilusões e toda a sociedade se organiza dessa forma. Arrasto-me numa existência que recuso constantemente e não tenho a coragem nem dignidade de sair de cena.

Antes de aprender a olhar as coisas e as pessoas sem ilusões, tudo era suportável. Antes de aprender a olhar para essa existência que é minha, tudo era suportável. Havia o verão que atenuava tanta coisa... nesse tempo em que havia árvores e campo. Depois começamos a perceber que há coisas que não têm atenuação possível. O ódio, por exemplo, que somos levados a sentir mesmo sabendo que é um corpo estranho que não nos pertence e que nos infecta. Odiamos os que tudo fazem para nos levar a odiá-los, os que nos empurram para emoções desprezíveis e primárias. A injustiça, como pode ser atenuada? O sofrimento das crianças? A irresponsabilidade? A insensibilidade? Olhamos em volta e tudo nos desgosta. Não quero ter um lugar nessa farsa maior, a de fingir que nada disso tem a ver comigo e continuar a existir dentro de um corpo, num espaço protegido, na alienação total. Fico do lado de fora, mas acabo por nada fazer para mudar alguma coisa. O que me impressionou no Filósofo, de desde o primeiro momento, e mais me comoveu, foi esse monólogo que arrasa tudo de forma sistemática até nada ficar de pé - só as ruínas que somos todos nós e as nossas existências.


É esse monólogo que utilizo como arma contra a loucura e o desespero. É esta idéia, e tudo passa a girar a volta dessa idéia essencial. A claridade que surge da escuridão, como dizia muitas vezes. Essa luz muito branca que cega a maior parte das criaturas que preferem viver na escuridão. Para existirmos temos que ignorar a nossa capacidade de pensar, transformamo-nos numa espécie de adaptados – exatamente como defendem os estudiosos do comportamento humano. Como nos afastamos definitivamente desse percurso, como não podíamos respirar nesse percurso, ficamos entregues a nós próprios. Não aceitar a mediocridade da existência que é a tendência mais forte do homem. O Filósofo tinha uma maneira muito própria de analisar esta tendência para mediocridade e também para a violência. Via uma relação entre a geografia física e a geografia humana. Pensei muitas vezes nesse acaso geográfico terrivelmente injusto que pode limitar definitivamente uma pessoa. Inicialmente esta idéia sufocava-me, depois passou a fazer parte das coisas de que não podemos escapar. O pior que poderia acontecer seria eu aceitar essas coisas como naturais. Seria o pior que me podia acontecer, chegar a esse ponto é que não. Se não tivesse encontrado o Filósofo naquela altura talvez tivesse enveredado pelo percurso do compromisso e da aceitação da realidade, só de pensar nisso fico doente. A idéia de compromisso e aceitação seja do que for assustam-me mais do que tudo, lembram-me a perda da dignidade que é a única coisa que podemos preservar até o fim. Por isso é que o Filósofo não escolheu o silêncio, não o podia ter feito. Resolveu arrasar esse cenário e desmontar a peça, de forma precisa, sem tréguas, mostrar toda essa farsa insuportável. Escolheu um papel entre vários possíveis, vestiu a fatiota sabendo que lhe seria sempre incomoda e partiu de viagem.
Tratou-se sempre e até o fim de uma viagem.



Som
Webern, Anton, Passacaglia, 5 Movements for string orchestra op. 5, 6 Pcs. For orchestra op.6, Symphony op. 21

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